Convidado: Marcelo Abreu, jornalista, da ilha de São Luís e brasiliense por afeto adquirido
Era 1985. Deixei uma ilha perdida no Meio Norte deste país e vim, com meus pais, morar em Brasília. Auge da adolescência. São Luís, capital do Maranhão, havia ficado a dois mil quilômetros. Uma amiga de escola, lá da ilha, que já estava aqui havia um ano, me disse, sem meias palavras:
Em Brasília, a gente só tem duas opções: ou se ama ou se odeia. E tu vais ter que decidir entre te adaptar, imigrar ou morrer”.
Assim, Brasília me foi apresentada: cruel, árida e seca. E olha que cheguei aqui em janeiro. Chovia e fazia frio, como não chove mais. Queria ver uma esquina. Um beco. Azulejos portugueses e casarões sabia que não os encontraria. E o mar que via todo dia? Nem pensar. Mas queria ver alguma esquina. Não a vi, pelo menos como imaginei. Aqui me formei em jornalismo. E, como repórter de Cidades do Correio Brazilense, ainda muito jovem, passei a enxergar as esquinas que nunca tinha visto. Elas existem, sim. Os becos, também. Basta querer enxergá-los.
Brasília deixou de ser uma eterna adaptação. Uma estranheza. E eu, um eterno imigrante. Escolhi que seria a cidade onde viveria. Comecei a ouvir as histórias das pessoas. De Norte a Sul desta cidade tão singular e reta. Conheci gente de verdade. Gente que tinha projetos, sonhos, acreditava e tinha uma vontade enorme de fazer dessa cidade um lugar mais real. Uma cidade só se torna real quando as gentes são reais e constroem histórias reais.
A Brasília política ficou onde deveria ficar. Na verdade, ando anos-luz dela. Falha como jornalista? Talvez. Ou talvez tenha sido a minha melhor decisão de vida. Decidi enxergar em Brasília apenas o que me interessava. Aos poucos, fui descobrindo as minhas esquinas. A primeira, talvez, foi a da quadra onde morei com os meus pais, a 105 Sul. Depois, já na faculdade, a da 109 Sul e toda sua subversão beiruteana. E, cada vez mais, as esquinas foram se mostrando no meu caminho.
Ser repórter foi a melhor esquina que desejei na vida. Ouvi gente me contando milagres de vida. Gente que deu a volta por cima. Gente que sofreu muito. E, ainda assim, renasceu. Brasília, finalmente, se tornou humana para mim. Quando descobri toda a sua humanidade, decidi ficar.
Da água do Paranoá, inventei o mar com o qual esbarrava todo dia na ilha secular de onde vim. No céu desta cidade planejada, não precisei inventar nada. Bastou olhar pra ele. E vi nesse azul o verdadeiro, ou num belo pôr do sol, o mar desta cidade — feita de sonhos e de uma teimosia sem fim. Há 32 anos, a terra de Lucio e JK é a cidade onde moro. Não morri.
Resolvi descobrir essa cidade pelas pessoas e suas histórias. É o meu ofício. Hoje, depois de 27 anos de profissão, não tenho mais dúvida: pelas histórias que ouvi e escrevi, Brasília se descortinou inteiramente pra mim. E ela, pelo menos a Brasília em que decidi viver, está muito, muito longe da Esplanada, dos seus poderes engravatados. Poderes? Não, na minha Brasília não há poderes. Há uma gente comum e anônima especialista em viver e contar suas melhores histórias. É nessa gente em que acredito. É nessa Brasília onde quero viver.
13 Comentários
Rosângela Fernandes
06/06/2017 at 09:40Linda história, linda narrativa, lindo olhar. Ao meu ver, já podes virar história de superação na revista veja. História de um nordestino que foi, viu, venceu e não morreu.
Parabéns, Marcelo Abreu!
Parabéns, pela iniciativa e atitude das criadoras do olhar de Brasília.
Ana Maria
06/06/2017 at 10:24Maravilhoso, como sempre!!! Marcelo, a ti foi dado o dom das palavras! Histórias bonitas existem, mas há que existir o garimpeiro para descobrí-las e mostrá-las, em todo o seu esplendor, a esse mundo tão carente!
Carmen Ganzelevitch Gramacho
06/06/2017 at 16:36Como sempre, você comove a que tem o privilégio de ler VOCÊ!
Brasília é mesmo tudo isso, mas vista por seus olhos fica ainda mais bela.
Vim de outras terras muitos distantes, bem mais do que a sua Ilha, mas é aqui que quero ficar e que minha cinzas sejam espalhadas no nosso Lago Paranoá.
Viviane da Rocha Spiegel
06/06/2017 at 19:39Só poderia ser este gênio chamado Marcelo Abreu para escrever este relato contundente ! Como gosto deste contador de história ! Você é único ! Me sinto privilegiada por ter você como amigo ! Sou sua fã de carteirinha ! Parabéns !
Bertolucci
07/06/2017 at 15:06Grande Marcelo, meu caríssimo amigo.
Ricardo de Mendonça Costa
07/06/2017 at 21:40Obrigado por traduzir pra nós o melhor da cidade, Marcelo. Essa Brasília de que você fala é a verdadeira, a amada por todos nós. Parabéns, um cheiro!
Lúcia de Fátima Martins
07/06/2017 at 21:43Relato sincero e verdadeiro daquele que aprendeu, no dia a dia, a gostar de Brasília,sem becos, azulejos seculares e esquinas, mas sim das estórias das pessoas…contadas brilhantemente pelo jornalista que ama o que faz,de um jeito que só ele sabe fazer…humano, comovente !Parabéns Marcelo !!
Geiza
07/06/2017 at 22:54Parabéns! Marcelo, tu és um gurrreiro . Muito bom
ler suas histórias, pois Expressa a maior riqueza, o SER.
Patrícia fernandes
08/06/2017 at 01:14Belíssimo, Marcelo, parabéns! O relato honesto de alguém que foi cativado pelo melhor patrimônio que uma cidade pode ter – seu povo – , em uma narrativa saborosa que só os bons contadores de história sabem construir!
denise santana
08/06/2017 at 07:36Texto suuuuuuuuuuper bom.
Katia Aguiar
08/06/2017 at 09:05Marcelo Abreu, como sempre, engrandecendo o jornalismo, a vida e Brasília.
Edna Palma
08/06/2017 at 10:51Parabéns Marcelo.
Lindo, fantadtici , o texto e o autor.
Beijos
Ivana
09/06/2017 at 12:18Faço minhas as suas palavras. Sem royalties e nem copyright. Brasília é linda, tem gente de verdade, suas tradições tão novas e já consolidadas (como alguns “points” que vc citou, esquinas de verdade (qual jornalista nunca tomou uma sopa de madrugada numa esquina de Brasília?). E tem pessoas como vc é eu – que cheguei aqui no dia 1o de Janeiro de 1971 e estou até hoje. Nós, que amamos Brasília, sem nunca deixar de reverenciar nossas origens, somos os “fazentes” e construtores desta terra. Parabéns!!!!????