Convidado: Marcelo Canellas é um repórter andarilho que, quando para, para em Brasília.
Estávamos já todos os netos aboletados no sofá, uns sobre os outros, em viva algazarra, enquanto nossa avó despendurava do prego a gravura defronte, uma reprodução de Independência ou Morte, famosa pintura de Pedro Américo em que dom Pedro I aparece desembainhando a espada para, imagina-se, soltar o tal brado retumbante às margens do Ipiranga. Nossa excitação era porque, ao retirar o quadro, minha avó estava, na verdade, preparando a tela improvisada em que assistiríamos, na parede da sala, o cineminha que nos levaria ao futuro, projetando, no espaço deixado por aquele Brasil arcaico e remoto, uma cidade psicodélica que parecia ter sido construída por extraterrestres.
O cine-exibidor em questão era um tio padre, irmão de meu pai, que havia acabado de chegar de Brasília cheio de descrições que beiravam ao realismo fantástico: uma urbe emergida no vazio do sertão goiano, costurada por bulevares imensos onde os carros, em constante movimento, faziam espargir um autorama gigante, ponteado por monumentos colossais de mármore branco, parte de um desenho mágico, geometricamente perfeito, onde praticamente não se viam pessoas na rua, embora houvesse quase tanta gente vivendo lá quanto em Porto Alegre, a maior cidade que já tínhamos visto. Minha imaginação de menino enxergava passagens secretas ligando um prédio a outro e tornando possível a vida subterrânea que fervilhava numa dimensão paralela.
Estávamos em janeiro de 1975, na casa de veraneio de Curumim, praiazinha do litoral gaúcho onde minha família se reunia todo ano. A grande novidade daquele verão era o projetor de slides do meu tio padre, engenhoca que ele montava diante de nós, conectando cabos e encaixando quadradinhos de fotos translúcidas numa caixa retangular que deslizava pelo trilho para que a passadora metálica acionasse quadradinho por quadradinho, e o jato de luz operasse, na parede da sala, o milagre da amplificação da imagem. Naqueles tempos sem internet, o bisavô do data show nos trouxe, pela primeira vez, uma vista aérea do Plano Piloto:
– Que avião que nada! Brasília é uma pororó-azul!
A exclamação de meu tio ganhou sentido quando ele projetou, lado a lado, uma imagem do Plano polvilhado de superquadras, e a foto de uma borboleta negra cravejada de manchinhas azuis. O corpo da borboleta, a tal pororó-azul, era o Plano Piloto, e as manchinhas nas asas eram as superquadras. Meu tio fotografou o bichinho na Torre de TV e, em seus devaneios de padre, achou que aquele bando de comunistas que botou Brasília de pé recebeu um sopro de inspiração poética quando Deus fez pousar uma borboleta igual aquela no nariz de Lucio Costa. Durante muito tempo, tomei a picardia como verdade. Mas os anos passaram, vim morar na capital, onde nasceram os meus dois filhos, e aquela tarde de veraneio em que conheci a cidade borboleta se perdeu n’algum desvão da memória.
Eis que, num domingo desses, deitado na rede durante a sesta, uma borboleta negra sassarica esvoaçante diante de mim para pousar em seguida numa das pilastras da varanda. Quando ela aterrissa de ponta-cabeça, vejo o cintilar de suas manchas azuis. Meu coração acelera, movo-me lentamente para apanhar o celular em cima da cadeira e prear a imagem da cidade borboleta de minha infância. Esgueirado de tensão, arrasto-me rente à parede e me aproximo devagar. Aponto a câmera do celular, faço o foco e zás! A borboleta alça voo por cima da minha cabeça. Afoitamente, aciono a galeria do telefone e vejo que consegui tirar a foto. Uma única. É esta que o leitor vê ilustrando a crônica. Corri para o Google e me pareceu que fosse mesmo a pororó-azul.
Aquela borboletinha foi como um fragmento de lembrança fóssil que me permitiu recompor todo o esqueleto da memória. Não só voltei àquela tarde de verão de antanho, como restabeleci a verdade poética inventada por meu tio. Para mim, Brasília será, para sempre, uma borboleta pousada no nariz de Lucio Costa.
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