Convidado: Henrique Fróes é colunista do site Congresso em Foco. Formado em Comunicação Social e em Filosofia, é mestre em Psicologia Clinica e Cultura pela UnB.
Não bastassem os motoristas que ainda teimam em desrespeitar a faixa de pedestres –uma das poucas instituições locais que ainda nos dá orgulho – os pedestres estão cada vez mais descumprindo a sua parte no ritual.
Tal qual um axé das antigas, todo brasiliense conhece a coreografia: dá uma paradinha, acena com a mãozinha, espera um pouquinho e vai! Mas agora não: sem conseguir desgrudar os olhos dos celulares, eles simplesmente continuam em marcha, apostando na atenção dos motoristas – que, como nós sabemos, também adoram dar uma espiadinha em suas telas quando estão ao volante. Já dá para imaginar o resultado, né?
Fico imaginando um grego ou um romano das antigas observando os nossos costumes atuais. Com certeza, ficariam espantados com o nosso vício contemporâneo de andar curvado, com os olhos grudados nos smartphones.
Para os antigos, o andar de cabeça erguida não era uma mera questão de manter a postura correta ou um modo de se evitar acidentes pelo caminho. Eles enxergavam na postura ereta do ser humano uma diferença fundamental entre a nossa espécie e o restante do reino animal.
Nessa perspectiva, somente nós teríamos a capacidade de direcionar nosso olhar para a frente e para o alto, enquanto os bichos, por sua constituição física curvada, estariam praticamente condenados a manterem os olhos voltados para baixo.
Tal diferença não era entendida como uma vantagem competitiva dos humanos sobre os animais, e sim como o símbolo de um poder inerente à nossa espécie: o da transcendência. Voltar a cabeça para o alto, deixar o olhar perder-se na imensidão celeste, seria uma experiência imprescindível para o despertar no espírito de perguntas fundamentais sobre a constituição do universo e a existência terrena. Tal gesto nos lança para fora de nós mesmos e abre novas perspectivas para além do aqui e agora em que nos encontramos habitualmente.
Já a natureza, nos ensina uma sentença latina, está sempre encurvada porque se volta sobre si mesma (“natura semper in se curva, et ad se reflectitur”). Essa afirmação aponta para o fato de que, no reino natural, cada ser limita-se a aplacar seus apetites e a manter a própria sobrevivência. Nesse mundo encurvado, cada um cuida apenas de si, a procurar algo que lhes capte por qualquer motivo a atenção, atendendo aos interesses mais comezinhos.
Espelhos portáteis
Mesmo possuindo uma constituição física que nos permite manter uma postura ereta, cada vez menos honramos a nossa natureza transcendente. Aliás, quase nunca, se repararmos naqueles que estão à nossa volta. Um entusiasta das novas tecnologias poderia argumentar que, com o celular em mãos, nosso campo de visão se amplia, ao invés de se estreitar. O pequeno aparelho seria como uma janela para o infinito: por meio dela, poderíamos direcionar o nosso olhar para além do horizonte imediato que temos diante de nós, livres das amarras do tempo e do espaço!
A experiência, no entanto, nos mostra que, diante dessa possibilidade, o que fazemos é o completo oposto. Tendo o mundo virtualmente em nossas mãos, ficamos aprisionados em nossa própria imagem, tal como na lenda de Narciso, na qual o trágico personagem mitológico apaixona-se por si mesmo ao se enxergar pela primeira vez nas águas de um lago. No nosso caso, é a chamada bolha das redes sociais que nos mantém cativos, sem que percebamos que todos aquelas ideias, preferências e preconceitos que surgem na telinha são apenas os nossos, espelhados pelo poder dos algoritmos.
Com os olhos voltados para os nossos umbigos portáteis, nem nos damos mais conta das belezas e feiuras da cidade. Deixamos de admirar os monumentos de Niemayer, as escalas monumental e bucólica de Lúcio Costa e, claro, aquele céu mais elogiado que a derrière da Paola Oliveira. Também vamos ignorando o que o tempo e a nossa falta de cuidado provocam na nossa já sofrida paisagem urbana. Mais do que isso tudo, porém, vamos perdendo a capacidade de projetar a Brasília que sonhamos e queremos, limitados que estamos a apenas usufruir, encurvados, a Brasília que um dia projetaram para nós.
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