Convidado: Frederico Flósculo Pinheiro Barreto é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília e vencedor do Concurso Nacional de Revitalização da Avenida W3.
Concepção Original da Via de Serviço
A Avenida W3 foi concebida originalmente como uma espécie de “pequena E.P.I.A.” ou uma via de serviço para as áreas residenciais e comerciais do corpo das asas do Plano Piloto de Brasília. Nessa via de serviço, ficariam localizados “garagens, oficinas, depósitos do comércio em grosso etc.” Esse apoio “atacadista” e “oficineiro” ficaria na faixa que veio a ser denominada Quadras 500.
Lucio Costa destinou, originalmente, na proposta vitoriosa do concurso nacional para a Nova Capital do Brasil, a faixa que foi denominada posteriormente como as Quadras 700, para a instalação de floriculturas, hortas e pomares. Ou seja: as 700 seriam pequenas e médias “chácaras” de produção de alimentos, tornando o seu Plano Piloto mais próximo de uma grande ecovila.
Escreveu Lucio Costa no documento que hoje conhecemos como Relatório do Plano Piloto de Brasília:
Ao fundo das quadras estende-se a via de serviço para o tráfego de caminhões, destinando-se ao longo dela a frente oposta às quadras, à instalação de garagens, oficinas, depósitos do comércio em grosso etc., e reservando-se uma faixa de terreno, equivalente a uma terceira ordem de quadras, para floricultura, horta e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalaram-se então largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por uma, ora por outra, e onde se localizaram a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o varejo do bairro, disposto conforme a sua classe ou natureza.”
As décadas de sucesso e atratividade
Essa importante via foi imediatamente transformada, como tantos outros aspectos do plano original, naqueles primeiros anos de sua construção. Certamente, a alteração mais importante foi a total eliminação das “chácaras produtoras” do que viria a ser a faixa das Quadras 700, e a construção das várias quadras de casas (e alguns blocos de apartamentos de 2, 3 e até 4 andares) para “engenheiros” e a elite de prestadores de serviços naqueles anos heroicos.
Mal Brasília foi inaugurada, em 21 de abril de 1960, e já havia comércio varejista nas Quadras 500, multiplicando-se os pequenos e medianos restaurantes, criando a primeira “zona vibrante” para os encontros sociais da cidade. Essa atratividade foi ainda mais fortalecida pelo lento sucesso dos Setores de Comércio Local, que deveriam ser às Superquadras e pela total inexistência dos importantes “Setores de Diversões”, Norte e Sul – que somente viriam a ser ocupados em meados da década de 1970. Durante duas décadas, a Avenida W3 foi o shopping da cidade, cada vez mais bonita e sofisticada, diversificada e atraente, bem diferente daquela pragmática via de serviços prevista pelo grande Lucio Costa.
Anos 1980 – início da decadência
Com a progressiva consolidação dos Setores de Comércio Local, com a construção dos Setores de Diversão Norte e Sul, com o fortalecimento do comércio nos bairros (erroneamente chamados de “cidades-satélites”, pois não têm autonomia alguma), com a entrada em cena de shoppings “de verdade” (como o ParkShopping, projetado com essa finalidade, à moda norte-americana), essa inesperada função de avenida comercial e de diversões diversificada e atraente começa a, vertiginosamente, decair.
As iniciativas de revitalização
Com a redemocratização do país e a democratização de Brasília – que nunca fora democrática – nos anos 1990, os esforços de “revitalização” da Avenida W3 foram praticamentes inúteis. Uma excelente oportunidade foi perdida: com a iniciativa de criar o Metrô de Brasília, a possibilidade de passar a principal linha pelo subsolo da Avenida W3 foi antevista com enorme – e fundamentado – otimismo. Efetivamente, a passagem do Metrô pela W3 seria a maneira mais poderosa e efetiva de revitalizar toda a sua extensão. As consequências da passagem do Metrô seriam radicalmente transformadoras, a meu ver: em especial, seria vigorosamente verticalizada, por força da valorização do solo urbano e do imenso aumento da mobilidade acarretado pelo transporte de massa.
Contudo, o governo tomou a equivocada decisão de passar o Metrô pelo Eixo Rodoviário, uma terra-de-ninguém, sem o menor sentido. Assim, uma excelente oportunidade de revitalização da W3 foi estupidamente – e bota “estupidamente” nisso – perdida por essa decisão do próprio governo do DF.
Perdido o Metrô, veio o concurso de revitalização
Evidentemente, os governantes sabiam da tolice perpetrada pelo Metrô desperdiçado. Em 2002, o então governador Joaquim Roriz – que iniciava seu quarto mandato – fez um grande concurso nacional para a revitalização da Avenida W3. Grandes escritórios de todo o Brasil concorreram, num total de 28 inscritos. Somente em Brasília foram 14 grandes escritórios e equipes de universidades.
Esse concurso pretendia fazer aquilo que o Metrô não fez (por não ter sido implantado na W3): verticalizar e assim “revitalizar pela expansão imobiliária”, com a criação, por meio do concurso, de “uma nova W3”, cheia de grandes edifícios envidraçados etc.
Para que isso fosse possível, o governo Roriz, maquiavelicamente, queria “quebrar a moral” da preservação de Brasília: assim como Lucio Costa fez um plano consagrado por meio de concurso público, essa consagração seria “quebrada” por outro certame público. Assim, a expectativa em volta desse concurso público de revitalização da Avenida W3 foi enorme.
A grande decepção
O resultado desse Concurso Nacional de Urbanismo não poderia ser mais decepcionante: ganhou uma equipe liderada por um professor de projeto arquitetônico (Frederico Flósculo), formada por 12 psicólogos sociais (ou “ambientais”, como se autodenominam). Essa proposta era a única que não verticalizava a Avenida W3. Todas as outras propunham a verticalização da avenida. Todas. Ou seja: o governo Roriz quase conseguiu seu intento. Apostou na verve dos urbanistas, que não viram alternativa para a revitalização da Avenida W3 que não a criação de milhões de metros quadrados de “mercadoria imobiliária” – certamente congestionando violentamente toda aquela extensa região da cidade.
A proposta vencedora desagradou profundamente a Roriz e aos especuladores imobiliários
A nossa proposta era centrada na revitalização baseada em processos de desenvolvimento comunitário e comercial, articulados através de um corredor cultural, que seria formado por instituições de todo o mundo, de todo o planeta. Algo que parece impensável até os dias de hoje, imagine-se em dias de Roriz.
Essa ousada iniciativa seria feita em articulação com o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) e com iniciativas fiscais e gerenciais do Governo do DF), de forma paulatina, seguindo uma fórmula de sucesso que revitalizou extensas áreas em Bilbao, Barcelona, Paris, São Francisco e Nova York.
Além disso, um novo modelo de gestão urbana seria articulado, com o fortalecimento das Prefeituras Comunitárias, das quadras residenciais, comerciais e mistas, que passariam a ter poder decisório nas concessões de uso em áreas públicas (como na louca distribuição de pontos de quiosques, decidida nos gabinetes dos administradores regionais, de forma sórdida e politiqueira), e nas prioridades de obras públicas (de acessibilidade, de urbanização, de iluminação pública, de mobiliário urbano etc.).
Os comerciantes seriam sistematicamente apoiados, com linhas especiais de financiamento e com uma equipe pública especializada na gestão empresarial, na arquitetura empresarial, no sucesso empresarial, num programa de revitalização pelo empreendedorismo – que seria exemplo para a sua reprodução em todos os bairros da cidade. A proposta vencedora teria baixíssimo custo para o governo e constituiria a maior escola de administração de negócios diretamente voltados para a revitalização urbana do Brasil.
A proposta vencedora desagradou profundamente ao governo e a seus aliados do setor imobiliário. Na verdade, o governo realmente achava que a única revitalização possível ocorreria pela verticalização da Avenida W3, com o desfiguramento do projeto urbanístico de Brasília.
O Governo do DF pratica a superocupação da cidade e do território
O governo do Distrito Federal continua, até hoje, a mostrar o seu repúdio por uma revitalização que ocorra por meio da cultura, dos negócios e da comunidade. Passados 15 anos (2002-2017), as propostas de “revitalização” de sucessivos governos (Roriz, Arruda, Agnelo, Rollemberg) são superficiais, cosméticas e visivelmente ineficientes. Isso revela a péssima qualidade técnica e científica (no sentido da ciência humana, social, psicológica e de negócios) da mentalidade de sucessivos governos do DF. Esses governos têm somente uma tecla: a ocupação adensada e congestionadora da cidade.
Exatamente a estratégia praticada por mais de um século na congestionada cidade de São Paulo. Exatamente a mesma estratégia, os mesmos padrões de ação.
2 Comentários
antonio eustaquio santos
10/11/2017 at 15:04O “repúdio por uma revitalização que ocorra através da cultura” é de fácil constatação. O Centro Cultural Renato Russo que foi revitalizado inicialmente pela associação japonesa Mokite Okada, há 20 anos, foi logo deteriorado com suas fachadas sendo grafitadas até perder a sua identidade para depois ser fechado a pedido do MPDFT, pois a obra nunca fora finalizada e os equipamentos de combate a incêndio nunca foram instalado pelo GDF. Agora não nos surpreende que o GDF está a fazer obras sem que a comunidade e o autor do premiado projeto de arquitetura conheçam o Projeto que está a ser executado. Se a Ética não é respeitada pela Secretária de Cultura o que podemos esperar do resto do governo do GDF?
Tânia Battella
10/11/2017 at 17:05Marcia e Samantha, excelente é oportuno passar a palavra ao vencedor do concurso de “revitsluzação” da w3: Professor Ferederico Flósculo. Sua proposta, vencedora, diferente das demais, aposta na preservação do Conjunto Urbanistico de Brasília. Mas é muito criativa e certamente dará trabalho ao executivo e não atendeu às expectativas até hoje sempre atendidas, do setor imobiliário. Mais do que isso, em total desrespeito, o atual governo quer incluir no PPCUB ( o mesmo de antes), pontos das demais propostas, à vencedora, como se agora fosse hora de “leiloar” o que “alguém” subjetivamente, entendeu muito bom nas propostas que NÃO VENCERAM O CONCURSO. Desrespeito aos profissionais que participaram do concurso, maior ainda desrespeito ao (s) vencedor (s) do concurso e ainda maior desrespeito a sociedade que, afinal de contas, bancou o concurso e acreditou nas Instituições que o promoveram. Conclusão: de uma vez só, o GDF pretende DESAGRADAR e DESRESPEITAR A TODOS.