Convidado: Bruno Leite é coordenador-geral da ONG Rodas da Paz e defensor de uma convivência mais pacífica entre pedestres, ciclistas e motoristas nas ruas de Brasília.
Aqui cheguei há pouco mais de 10 anos. Vindo das Minas Gerais, a plana cidade logo me assustou. Ao contrário de outros, não quis voltar. Algo me cativou e me prendeu. Tinha a impressão de estar em uma maquete gigante, em um campus universitário, e isso me intrigava. Porém, a vida adulta que aqui iniciei – de trabalho, estudo, rotina, happy hour, sermão do chefe e demais pormenores – me absorveu.
O tempo passou. Aos poucos, entendi como funciona aqui se deslocar e ir para longe. Cinema? Atravessa a cidade. Compras? Atravessa a cidade. Ir a um bar? Atravessa a cidade. Sempre de carro e muito, muito rápido. Todos me diziam que, para morar aqui, era preciso ter carro e que Brasília havia sido projetada para eles.
Trabalho, estudo, rotina, happy hour, sermão do chefe, atravessa a cidade, atravessa a cidade, não me permitiam parar e pensar a cidade.
Com o passar de mais tempo, cada vez mais me deslocar foi deixando de ser simples. Encontrar vaga na porta do trabalho já não era moleza. Era preciso acordar mais cedo se quisesse garantir aquela vaguinha na sombra. Afinal, quando aqui cheguei, a frota de veículos do DF era de, aproximadamente, 965 mil veículos. Hoje, são mais de 1.700.000 e continua a crescer.
Nesse momento, uma luz se acendeu e aquilo que me intrigava apareceu como uma solução: moramos em uma cidade parque, arborizada e cheia de atrativos a cada esquina (OK, Brasília não tem esquina); por que então saímos de casa, pegamos elevador até a garagem, entramos em um carro com vidro com película, ligamos o ar-condicionado, nos deslocamos a 80km/h até o trabalho, estacionamos, pegamos o elevador, sentamos no escritório e voltamos ao fim dia enquanto o carro fica na vaga? Viver esta cidade dessa maneira não faz sentido. É muito pouco.
Foi então que meu cotidiano mudou. Abandonei o carro no dia a dia e adotei a bicicleta. No meu novo veículo, passei a me deslocar pela cidade e o vento na cara me proporcionou a liberdade que o escritório estava drenando. O ritmo do deslocamento me permitia ver as pessoas chegando ao trabalho, o pé de fruta em frente ao bloco; ouvir os pássaros cantarem (e como tem passarinho aqui!); ver o bêbado que não conseguiu chegar em casa e dormiu na portaria do bloco vizinho, até o casal de amantes se despedirem na porta do bloco depois de passarem a noite juntos e logo em seguida cada qual entrar em seu carro e seguir a vida. Pude ver a quadra comercial além de farmácias e salões de beleza: um pequeno café, um hospital de brinquedos, o escritório da cartomante e até uma escola de pole dance. E tudo isso contribuindo com o meu bolso e com a cidade.
Andar de bicicleta em Brasília me permitiu ver também que, apesar de mais e mais pessoas terem tomado a mesma decisão que eu, a cidade ainda segue acelerando seus motores. A cultura de dependência do carro ainda é alta. A faixa de pedestres, orgulho do brasiliense, parece ser um resquício de cordialidade no trânsito. Os ânimos andam acirrados e a disputa por espaço está beirando a barbárie. As vias urbanas ainda possuem limites elevados para uma cidade que quer convívio seguro entre pedestres, ciclistas e demais usuários motorizados – isso quando são respeitados, pois o que temos não é mais velocidade máxima, mas, sim, velocidade mínima, em que motoristas pisam no freio para passar no radar e aceleram logo em seguida. As políticas públicas dos diferentes governos são sempre baseadas na construção de mais pistas e viadutos. É como combater a obesidade afrouxando o cinto.
A crescente agressividade no trânsito me assusta e coloca em risco quem está a pé, de bicicleta, e possui os mesmos direitos de usufruir daquele espaço público, o mesmo direito de ir e vir, de chegar bem. Superamos a carromania e adentramos na carrodependência? Tenho a impressão de estarmos vivendo a cidade pela janela do carro, pelas ondas do rádio e pelas telas de nossos smartphones. Brasília, você só continuará fazendo sentido se mudarmos nosso cotidiano para vivermos uma cidade melhor, como você e nós merecemos.
Nota: Desde que aqui cheguei, trabalho no mesmo local e moro no mesmo bairro. Por isso, me refiro a Brasília com essa visão limitada ao Plano Piloto, mas há muitas outras Brasílias por aí que também merecem ser desvendadas e repensadas.
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