Uma história de encher o coração e o apetite às vésperas das festas de fim de ano. Conheça um pouco dos temperos da baiana Tia Zélia, uma pioneira que tem uma das cozinhas mais deliciosas da Vila Planalto.
Por Sara Campos
As marcas do tempo apenas salientam a simpatia de uma das cozinheiras mais famosas do endereço. Das mãos pequenas, orquestradas por uma forte personalidade, saem receitas de raiz nordestina, no restaurante batizado com o próprio apelido e formado por uma equipe de 11 mulheres. “Aqui só trabalho no dia a dia com mulheres. Elas são mais caprichosas e responsáveis que os homens. Ajudo a sustentar 12 mães de família”, afirma orgulhosa a baiana do povoado de Buritirama, no município da Barra do Rio Preto.
Ao lembrar a chegada até Brasília, impossível esquecer os 45 dias em que percorreu caminhos sem estradas em cima de um pau-de-arara, transporte para trabalhadores de várias partes do Brasil rumo à nova capital. “A gente vinha como boia-fria e eu estava com meu bebê de 11 meses e mais dois filhos”, recorda Zélia, que, ao lado de outros trabalhadores, teve Planaltina de Goiás como destino final.
Marmitas
Ao chegar, desesperada enquanto as crianças choravam de fome, Zélia dirigiu-se até um posto policial em busca de ajuda. “Eu também estava com fome e não tinha dinheiro nem comida. Os policiais me deram duas marmitas: partilhei uma com colegas de viagem e dividi a outra com as crianças. Já passei por muitas privações.” O ano era 1976, e o marido de Zélia na época esperava a chegada da família a Brasília.
Ele trabalhava como segurança da construção do Clube da Aeronáutica e foi alocado na histórica Vila Planalto, à época erguida com frágeis barracos de madeirite. Os mesmos policiais que a ajudaram com a comida a deixaram na porta da nova casa. “O endereço era Acampamento Tamboril. Só havia 15 barracos por lá nessa época”, recorda Maria de Jesus Oliveira da Costa, que foi empregada doméstica e trabalhou como vendedora de pão de queijo, bolo, mel, cachaça, carne de sol, além do antigo Café do Sítio, na Rodoviária do Plano Piloto.
A oportunidade de trabalho dentro de uma cozinha profissional chegaria em 1991. Uma amiga cozinheira de um bufê na Asa Norte foi chamada para preparar refeições para a festa de ano-novo do Iate Clube. “Esperavam por 2.300 pessoas. Assamos 800 aves e montamos várias tábuas de frios. Fiquei responsável pela parte de assados e temperei tudo. Disseram que eu tinha mão boa para tempero.” Essa experiência abriu um leque para outras vivências na gastronomia e a baiana chegou até os coquetéis dos palácios da capital.
Num deles, recebeu o convite que impulsionaria ainda mais sua história com a gastronomia da capital, do proprietário da Casa do Camarão. “Ele veio até mim e disse: ‘Você nasceu pra comandar, e não para ser empregada’. Eu respondi: ‘Isso é impossível’. Ele falou: ‘Nada é impossível. Tudo é possível quando a gente acredita e quando a gente quer’.” Em seguida, recebeu a proposta para revender os ingredientes da empresa.
Depois de trabalhar por sete anos, tia Zélia passou a cozinhar em um trailer e a administrar o lava a jato do irmão, ambos no mesmo terreno na Vila Planalto. “O pessoal lavava o carro e se sentava para tomar cerveja. Aí o povo me perguntava: ‘Tia, o que tem para almoçar?’ Foi aí que eu virei tia Zélia,” conta a baiana, que já cozinhou para autoridades da política nacional, até presidentes.
“Se eu olhasse para trás, eu não estaria aqui. Ou eu teria morrido ou sumido no mundo. Mas foquei na cozinha. Sempre falei pra Deus que queria ter um restaurante. Queria trabalhar com as minhas mãos. Já fui até o fundo do poço e levantei, me resgatei. Digo para qualquer ser humano: não desista de seu sonho nem de si próprio. Eu sempre encontrei pessoas que me ajudaram pelo caminho. Acho que é devido ao amor que eu transmito aos outros.”
A organizada cozinha do restaurante Tia Zélia, oficializado em 2008, permanece agitada em período de festas de fim de ano. Além das receitas nordestinas servidas durante o almoço, o local é palco de preparo para diversas outras, a mais famosa delas – o pernil fatiado (R$ 25 por pessoa) – surgiu durante um fato desesperador para uma cozinheira.
“Quando preparei o pernil inteiro pela primeira vez, todas as encomendas estavam com a carne crua por dentro.” Zélia resolveu o problema fatiando a carne e levando-a ao fogo sobre uma camada de cebola. “A cebola amacia a carne. Eu vou dourando e revirando até soltar um molho muito saboroso”, revela o segredo que mantém a umidade da carne. Os clientes que preferem outros clássicos podem optar pelo peru (R$ 150, serve 6 pessoas), chester (R$ 150, serve 6 pessoas), salpicão (R$ 40, o quilo) e pela rabanada assada (R$ 40, o quilo).
Sorte e alpiste
“Para mim, o Natal é importante porque alimento os meus clientes. Depois que comecei a trabalhar nessa época, não tenho mais tempo de fazer ceia. Quando termino o serviço, coloco um óleo ungido no peito e agradeço a Deus por todas as bênçãos.” Durante a virada do ano, a tradição de tia Zélia está em jogar alpiste no teto de casa para atrair prosperidade. “Todos os anos faço isso. E garanto que funciona”, diz a cozinheira em meio ao amplo salão decorado com presentes de clientes fiéis de várias partes do Brasil.
Tia Zélia Rua Maranhão, 8, Vila Planalto Telefone: (61) 3306-1526
Nenhum comentário