Convidado: Bruno Leite é coordenador-geral da ONG Rodas da Paz e defensor de uma convivência mais pacífica entre pedestres, ciclistas e motoristas nas ruas de Brasília.
Já ouvi dizer que as legislações brasileiras, como a nossa Constituição de 1988, são maravilhosas e bastante avançadas. O mesmo vale para demais políticas que retratam um desejo sincero da população e são materializadas em leis e decretos, ao serem trazidas do campo da abstração e das discussões acadêmicas e sociais. E quando as letras não conseguem sair do papel e as palavras ficam presas em um livro? Confirmamos o velho ditado de que na teoria é uma coisa e na prática outra. Ou, como diria o matuto, na prática a teoria é outra.
No campo da mobilidade urbana e da sustentabilidade, não é diferente. Não é mistério ou segredo que transporte público e transporte ativo são fundamentais para o futuro das cidades do mundo, especialmente as localizadas em países em desenvolvimento, e uma das soluções para combater o aquecimento global.
O conjunto teórico e prático é tão vasto e consagrado, que o Brasil o colocou em seu arcabouço jurídico e em sua agenda ao publicar, em 3 de janeiro de 2012, a Lei nº 12.587, que institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Essa lei estabelece, de acordo com o art. 6º, a prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados, e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado.
No campo das mudanças climáticas, a Lei 12.187/2009 e o Decreto no 7390/2010 estabelecem a Política Nacional sobre a Mudança do Clima, demonstrando o compromisso voluntário do Brasil para a redução das emissões de gases de efeito estufa, e determinam a criação de planos setoriais com as estratégias a serem adotadas em cada setor da economia.
Dentro do Plano Setorial de Transporte e Mobilidade Urbana, uma das principais ações elencadas é a expansão do uso do transporte público e da bicicleta como meio de transporte. Para isso, uma infraestrutura cicloviária deverá ser fornecida. Ou seja, pedestres e ciclistas também aparecem como solução para os problemas do clima.
Porém, o que vemos na prática é uma realidade muito diferente. As grandes obras de transporte e mobilidade do DF hoje, e historicamente, são ampliação das pistas para diminuir engarrafamentos. A grande obra atual é o Trevo de Triagem Norte, em que a Rodas da Paz precisou entrar com ação no Ministério Público, com base na Política Nacional de Mobilidade Urbana, pois ela não possuía no seu projeto ciclovias e calçadas.
Ainda hoje estamos reféns de transportes públicos de má qualidade, que não nos permite saber, por exemplo, o horário que o ônibus passará no ponto. Para o transporte ativo, não vemos ampliação da malha cicloviária e a conexão entre as ciclovias já existentes. Reformas ou construção de calçadas também não são uma realidade. Sem um transporte público de qualidade, integrando as diversas regiões do DF, as pessoas acabam sendo obrigadas a utilizar veículos automotores individuais; e isso vai se transformando em um círculo vicioso.
Além da contradição das políticas públicas, a sociedade como um todo também não comprou a ideia da mobilidade urbana e da sustentabilidade. O que vemos na televisão e na internet são propagandas e programas exaltando a sustentabilidade, a natureza e nossas cidades. Na teoria, isso só ocorre se usarmos menos os carros e valorizarmos o transporte ativo, para termos pessoas realmente vivendo a cidade. Entretanto, as mudanças em nossas rotinas para a valorização dessas atitudes parecem não serem fáceis.
Se na teoria precisamos reduzir o uso dos carros, deveríamos ser mais receptivos, e até incentivar a adoção de medidas de moderação de tráfego, como diminuição dos limites de velocidade nas vias urbanas, preferência para ciclistas e pedestres e restrição de veículos nas áreas centrais. Só assim teremos uma cidade para todos. A reprovação dessas medidas pela população acaba dificultando sua implementação pelo governo, que sempre está de olho em votos para as próximas eleições. Assim, quanto menos eleitores ele incomodar, melhor.
Talvez tenha chegado a hora de pararmos e nos perguntarmos: qual é a cidade que queremos? Dependendo da resposta, mudamos nossas atitudes e passamos a cobrar de quem deve.
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