Convidada: Romina Faur Capparelli é arquiteta, consultora legislativa do Senado Federal e integrante do movimento Urbanistas por Brasília. Também é membro do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-DF) e do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS).
Por mais que o tempo passe, certas coisas não são esquecidas nunca: o primeiro dia de aula, o primeiro beijo e… o segundo grau!
É a combinação letal de adolescência com estudo interminável de disciplinas aparentemente apartadas da realidade: “O som viaja a 340 m/s. Se alguém bate palmas e recebe o eco depois de dois segundos, a que distância está a parede?” Então nasce o “odeio ler tanto”, “não sei fazer cálculos” e você mal vê a hora de passar no vestibular para se livrar daquilo para sempre.
Para sempre? Só que não…
Um belo dia, já adulto, você se vê às voltas com uma discussão envolvendo decibel, moléculas, onda sonora, atmosfera. Só que, desta vez, vai ter que encarar. Pode ser que você seja um dos que amam um sambinha ao vivo, no boteco que fica bem ali na comercial. Ou que apenas seja alguém cujos sisos tenham sido extraídos e cada pancada no surdo parece ser na sua cabeça.
A verdade é que, assim como foi no segundo grau, enquanto não dedicarmos alguns poucos minutos do nosso precioso tempo para entender o que realmente está previsto na Lei do Silêncio e o que está sendo proposto no Projeto de Lei no 445/2015, continuaremos reféns de um “mestre”.
Continuaremos acreditando que dependemos de alguém que nos explique aquilo que acreditamos não entender. O problema é apenas quando, por causa do “odeio ler tanto”, passamos a embasar nossa opinião em comentários de redes sociais sem lastro científico.
Há poucos dias foi divulgada uma manifestação técnica contra o PL no 445/2015. Assinada por uma dezena de entidades ligadas a Arquitetura, Urbanismo, Engenharia, Acústica, Audiologia e Fonoaudiologia, compila alguns dos inúmeros argumentos científicos irrefutáveis e incontestáveis – pelos quais é inconveniente a aprovação da proposta de aumento dos níveis sonoros apresentada.
Por se tratar de uma nota essencialmente técnica, para muitos ela teve um gostinho de flashback de “odeio Física”! Hoje você até pode ser daqueles que usam a calculadora (do celular!) para saber que dia é amanhã. Mas, na iminência da deliberação sobre o PL na Câmara Legislativa do DF, acreditamos que “gastar” alguns poucos minutos do seu dia para entender o que está em jogo poderá evitar anos de inconformismo com o resultado da votação – qualquer que seja ele.
A Cultura, o Meio Ambiente, a Saúde e a Democracia agradecem! Você pode conferir a Nota Técnica, na íntegra, aqui:
NOTA TÉCNICA CONJUNTA CONTRA O PROJETO DE LEI N° 445/2015
As entidades ao final elencadas vêm a público manifestar-se veementemente contrárias ao Projeto de Lei nº 445, de 12 de maio de 2015, em trâmite na Câmara Legislativa do Distrito Federal, que dispõe sobre sons e ruídos, fixa níveis e horários em que será permitida sua emissão e dá outras providências.
A proposta, de autoria do Deputado Distrital Ricardo Vale, representa um retrocesso social e ambiental inadmissível, cujas nefastas consequências a sociedade não pode aceitar.
A União Europeia, preocupada com os 65% de europeus que viviam em áreas urbanas e que estavam expostos a níveis de ruído acima de 55dB Lden e 20% expostos a níveis de ruído noturno acima de 50dB Lnight, determinou a seus Estados-Membros a implementação de uma política atualizada em matéria de ruído, determinada pelos conhecimentos científicos mais recentes, bem como a adoção de medidas de combate à poluição acústica na fonte, compreendendo, inclusive, melhorias na concepção urbanística.
É o mesmo entendimento preconizado num dos pilares do moderno direito ambiental nacional e internacional, o princípio do poluidor pagador, que determina que quem polui é que deve responder pelo prejuízo que causa ao meio ambiente.
Para uma melhor compreensão da verdadeira dimensão dos impactos negativos de eventual aprovação do Projeto de Lei nº 445/2015 serão a seguir apresentados, de forma sucinta, alguns conceitos relacionados às matérias implicadas.
[…] ninguém que tenha alguma ideia na
cabeça pode evitar um sentimento de
pânico real diante desse rangido repentino
e agudo que paralisa o cérebro, rompe o
fio da reflexão e assassina o pensamento.
Arthur Schopenhauer
Olhe ao seu redor, olhe para si mesmo: tudo se resume a matéria e energia. Com o som, não haveria de ser diferente. A energia, quando liberada, faz vibrar as moléculas ao seu redor. Caso se propague pela matéria e seja percebida pelo aparelho auditivo, essa perturbação se torna uma vibração sonora. E é neste processo, resumido em tão poucas palavras, que se encaixa toda a polêmica acerca do Projeto de Lei nº 445, de 2015.
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O PL
O Projeto de Lei nº 445, de 12 de maio de 2015, pretende aumentar, de forma linear, os níveis permitidos na legislação de controle da poluição sonora para 75 dB diurnos e 70 dB noturnos.
Os níveis acima propostos estão em total desacordo com todas as normas médicas nacionais e internacionais que buscam preservar tanto a qualidade de vida quanto a saúde da população.
De forma ainda mais leviana, a proposição deixa de diferenciar os níveis sonoros conforme o tipo de atividade desenvolvida ou ocupação. Se aprovada, absurdamente toda a população do Distrito Federal estará exposta a níveis considerados inadequados até mesmo para áreas industriais.
Os níveis preconizados na legislação distrital hoje vigente (ver ao lado) estão em consonância com as determinações da NBR-10.151, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), a qual norteia toda a legislação ambiental federal.
No Sistema Nacional do Meio Ambiente, instituído pela Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, é conferida ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) a competência de estabelecer as diretrizes para controle da poluição ambiental. Por se tratar de norma técnica, encontra-se disposta na Resolução nº 1, de 8 de março de 1990, a qual dispõe que os níveis sonoros aceitáveis são aqueles determinados pela NBR-10.151.
A NBR-10.151 acaba de passar por extenso e minucioso processo de revisão. Na versão disponibilizada para consulta pública até o dia 8 de janeiro de 2018, os níveis sonoros apresentados eram exatamente os mesmos da norma original, justamente porque todos os estudos realizados nos últimos anos confirmaram e reiteraram que esses são os limites que asseguram a saúde da população.
Cumpre também alertar que será considerada inconstitucional, por ofensa ao princípio de repartição de competências instituído pelo federalismo brasileiro, qualquer alteração promovida na legislação distrital que venha torná-la menos restritiva que a legislação federal. O estabelecimento de normas gerais em matéria ambiental, é importante frisar, é competência da União, cabendo a cada unidade da Federação o detalhamento, conforme as características locais, mas sempre nos limites impostos pelas normas federais.
É necessário ainda o esclarecimento de que os níveis ora vigentes na NBR-10.151 são aferidos fora do estabelecimento comercial. Essa é a garantia técnica de que, numa democracia, é plenamente possível o convívio pacífico e organizado das diversas atividades urbanas – residência, comércio, lazer e indústria.
2. SOM
Por se tratarem, substancialmente, de comunicação humana, também os processos de produção de ondas sonoras e de audição se caracterizam pela existência de emissor, receptor, meio e mensagem.
O emissor é a fonte geradora, aqui entendida como qualquer ocorrência capaz de causar uma vibração. Para que a onda produzida por essa perturbação se propague é necessária a existência de um meio material, seja ele sólido, líquido ou gasoso.
Se for capaz de gerar estímulo auditivo, esse processo vibratório receberá o nome de onda sonora. Neste caso, o receptor será o sistema auditivo, responsável por captar o som e as variações na pressão do ar e por convertê-los em sinais elétricos capazes de ser processados pelo cérebro.
Fisicamente, para efeito de estímulo auditivo, é totalmente irrelevante se a onda sonora provém do atrito entre as cerdas de um arco e as cordas de um violino ou da detonação de explosivos. A compreensão dessa mensagem como ruído ou como som decorre basicamente da interpretação pessoal e subjetiva que o receptor fará do estímulo sonoro. Ainda que improvável, é perfeitamente possível que existam aqueles que, ao som do violino, prefiram a onda de choque gerada pela reação explosiva.
Para efeito de estímulo auditivo, é totalmente irrelevante se a onda sonora provém do atrito entre as cerdas de um arco e as cordas de um violino ou da detonação de explosivos.
3. RUÍDO
Por ser uma análise subjetiva de sensação auditiva, definir o incômodo relacionado ao ruído se mostra uma tarefa árdua. Para a área médica, entretanto, mostra-se indiferente tratar-se de sensação auditiva desagradável, desprovida de valor comunicativo, ou de fenômeno acústico não periódico, desprovido de componentes harmônicos definidos: o fato é que, há mais de 40 anos, o ruído é tratado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como problema de saúde pública.
Noise: Environmental health criteria 12. Geneva: World Health Organization; 1980.
Estudo publicado em 2011 pela entidade demonstra, de forma irrefutável, a correlação existente entre a exposição ao ruído ambiental e a ocorrência de danos à saúde. Ao contrário de fatores historicamente reconhecidos pelo seu potencial poluidor – como a poluição do ar, que diminuiu na Europa –, a poluição sonora tem aumentado persistentemente.
Burden of disease from environmental noise: Quantification of healthy life years lost in Europe. Copenhagen: World Health Organization, 2011.
Os critérios adotados para avaliação no estudo citado consideraram Lden para caracterização de incômodo relacionado ao ruído e Lnight para distúrbios do sono, os quais foram identificados em mapeamento de ruídos. Na Europa, a partir da Diretiva 2002/49/EC, tornou-se obrigatória tanto a elaboração de mapas de ruídos para qualquer aglomeração com mais de 250 mil habitantes quanto a adoção de medidas para sua redução.
Lden: nível sonoro equivalente para dia, entardecer e noite. Permite avaliar o incômodo relacionado ao ruído (acima de 55dB).
Lnight: nível sonoro equivalente para o período noturno. Permite avaliar os distúrbios do sono (acima de 50dB).
Diretivas contêm comandos obrigatórios aos Estados-Membros e se destinam à mitigação e ao controle da poluição sonora.
Estudos epidemiológicos relacionaram o ruído ambiental a diversas doenças cardiovasculares, incluindo infarto do miocárdio. A partir de 60dB(A), a probabilidade de infarto segue o Gráfico 1, abaixo.
Gráfico 1: correlação entre incidência de infarto do miocárdio e ruído ambiental. Fonte: WHO, 2011, p.22, tradução nossa.
Em relação à hipertensão arterial, os estudos demonstraram que, a cada incremento de 5dB(A), a probabilidade aumenta 1.05 (1.38 no nível de 24h), conforme Gráfico 2.
Gráfico 2: associação entre hipertensão arterial e ruído ambiental. Fonte: WHO, 2011, p.23, tradução nossa.
Os impactos negativos no aprendizado e memória de crianças em idade escolar em razão da exposição ao ruído foram comprovados em mais de duas dezenas de estudos epidemiológicos. As tarefas afetadas são aquelas que dependem de processamento central e linguagem, como compreensão de texto, memória e atenção. O impacto no desenvolvimento cognitivo nesses anos cruciais tem efeito duradouro no desempenho educacional. A porcentagem de crianças afetadas aumenta de acordo com o Gráfico 3.
Gráfico 3: curvas hipotéticas de exposição-risco e porcentagem estimada da população afetada. Fonte: WHO, 2011, p.48, tradução nossa.
A queixa mais frequente se refere aos distúrbios do sono. Os efeitos podem ser imediatos (despertares, mudanças no estágio do sono, movimentos corpóreos, respostas automáticas), posteriores (sonolência, diminuição na performance diária, deterioração das funções cognitivas) e duradouros (distúrbio do sono crônico). A medição foi feita na fachada das edificações, não nos ambientes internos. Constatou-se que 36% da população foi exposta a níveis superiores a 50dB; destes, 47% narraram distúrbios extremos, como representado no Gráfico 4.
Gráfico 4: população exposta a ruído ambiental e correlação com grave distúrbio do sono. Fonte: WHO, 2011, p.63, tradução nossa.
Ainda que geralmente associado à perda auditiva, o zumbido pode ser causado por exposição excessiva ao ruído mesmo quando não há perdas auditivas mensuráveis. O zumbido se refere à existência de sensação sonora mesmo na ausência de estímulo auditivo externo. Pode causar distúrbios ao sono, diminuição cognitiva, problemas de comunicação, ansiedade, depressão, frustração, irritabilidade, tensão, incapacidade laboral e redução de vida social.
E o último fator a avaliar o impacto produzido é o incômodo relacionado ao ruído. Constatou-se que 50% da população estava exposta a níveis superiores a 55dB; destes, mais de 70% relataram distúrbios extremos, representação apresentada no Gráfico 5.
Gráfico 5: população exposta a ruído ambiental e correlação com incômodo relacionado ao ruído. Fonte: WHO, 2011, p.94, tradução nossa.
Conclui-se que, em decorrência da exposição ao ruído ambiental, anualmente UM MILHÃO DE ANOS DE VIDA SADIOS SÃO PERDIDOS, o que faz do ruído ambiental a segunda fonte de poluição ambiental na Europa, atrás apenas da poluição do ar. Isso se deve, em parte, ao desconhecimento de que se trata de um sério problema de saúde pública.
Nos Estudos de Carga Global de Doença, o indicador utilizado é o Disability Adjusted Life Years (DALY), ou anos de vida perdidos ajustados por incapacidade. Incorpora os conceitos de anos de vida perdidos devido à morte prematura e à incapacidade.
Em estudo publicado há poucas semanas, a OMS voltou a afirmar que, considerados os custos diretos, indiretos e sociais, a perda auditiva tem um custo anual global de 750 a 790 bilhões de dólares. E que, dada a limitada eficácia dos tratamentos atualmente disponíveis, a prevenção deve continuar sendo a principal alternativa.
Addressing the rising prevalence of hearing loss. Geneva: World Health Organization, 2018.
Vários são os estudos que confirmam a efetividade de ações de prevenção, diagnóstico e controle da perda auditiva. Cerca de 37% dos casos, por exemplo, resultam de excessiva exposição ao ruído, cuja prevenção é possível mediante desenvolvimento de políticas públicas para controle dos fatores de risco.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A única forma democrática de coexistência pacífica e saudável de usos e atividades variados é por meio do desenvolvimento de um estudo cuidadoso que englobe tanto as questões acústicas quanto as de saúde pública. Só assim será possível, com seriedade e respeito à vida humana digna, definir e orientar o melhor zoneamento urbano a fim de decidir, caso necessário, o nível de intervenção acústica.
Também é fundamental a inclusão de diretrizes – nas políticas públicas de saúde, educação e gestão urbana – que considerem e respeitem as normas técnicas. Compete legalmente a arquitetos, urbanistas e engenheiros, em suas diversas áreas de formação, a atuação de forma a garantir proporcionalmente o equilíbrio ecológico e o bem-estar da população.
As entidades signatárias se colocam à disposição da sociedade e das diferentes esferas governamentais para contribuir com a discussão acerca das soluções técnicas existentes, de forma a permitir o pleno desenvolvimento da cidade de forma sustentável, sem prejuízos para nenhum segmento da população.
Não se pode esquecer, em nenhum momento, que a cidade só cumpre sua função social quando, além de assegurar o trabalho, o lazer, a cultura e a moradia, é ambientalmente sustentável.
Atualmente não basta evitar: é necessário também corrigir as distorções existentes, resultado do crescimento urbano desordenado e de seus efeitos negativos sobre o meio ambiente.
Assinam esta Nota Técnica Conjunta:
ROMINA FAUR CAPPARELLI
URBANISTAS POR BRASÍLIA (UPBSB)
STELAMARIS ROLLA BERTOLI – PRESIDENTE
P/ LUDMILA DE ARAUJO CORREIA – SOBRAC CO
SOCIEDADE BRASILEIRA DE ACÚSTICA (SOBRAC)
DANIEL MANGABEIRA DA VINHA – PRESIDENTE
CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO
DO DISTRITO FEDERAL (CAU/DF)
ANTÔNIO LUCIANO DE LIMA GUIMARÃES – PRESIDENTE
CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO
DO BRASIL (CAU/BR)
MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO CÓ – PRESIDENTE
CONSELHO REGIONAL DE ENGENHARIA E AGRONOMIA
DO DISTRITO FEDERAL (CREA-DF)
CÉLIO DA COSTA MELIS JUNIOR – PRESIDENTE
INSTITUTO DE ARQUITETOS DO BRASIL
NO DISTRITO FEDERAL (IAB/DF)
JOÃO CARLOS CORREIA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO
DE ARQUITETURA E URBANISMO (ABEA)
MARIA CECILIA MARTINELLI IORIO – PRESIDENTE
ACADEMIA BRASILEIRA DE AUDIOLOGIA (ABA)
THELMA REGINA DA SILVA COSTA – PRESIDENTE
CONSELHO FEDERAL DE FONOAUDIOLOGIA (CFFA)
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