Convidado: Marcos Pinheiro é jornalista, radialista e produtor. Apresenta o programa Cult 22 , na Rádio Cultura FM, e curte rock todos os dias do ano.
18 de junho de 1988. Numa época em que Brasília ainda carecia de opções culturais de grande porte e a cidade engatinhava no mercado do show business, aquela noite fria de sábado, sob a temperatura de 12 graus, prometia ser histórica: a Legião Urbana voltava à terra natal para lançar o terceiro álbum, Que país é esse?
Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Rocha, o “Negrete”, viviam o auge do sucesso. Várias canções da banda tocavam exaustivamente nas rádios de todo o país. Até mesmo a improvável Faroeste caboclo, com nove minutos de duração (!) e sem qualquer refrão, virou “hit” – mesmo que a parte da letra contendo palavrões tenha sido “adequada” às programações das FMs.
A Legião não se apresentava por aqui desde dezembro de 1986, quando veio lançar o disco anterior, Dois, com shows na Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional e no Ginásio Nilson Nelson – na época ainda batizado como Presidente Médici.
A ideia de utilizar o Mané Garrincha, um ano e meio depois, era do próprio Renato Russo, que queria dar um “grande presente” ao público local – e ao mesmo tempo “se vingar” dos que debochavam de seu trabalho quando morava na cidade. A produção estava reticente e preferia o ginásio. Até por isso foi contratado um equipamento de som incompatível com o porte de um estádio de futebol.
A expectativa em torno do evento era imensa! Uma multidão se deslocou para o centro da cidade, um público estimado em 50 mil pessoas. Mas o que era para ser uma grande festa se tornou verdadeira “praça de guerra”. No caminho para o show, alguns ônibus tiveram as janelas quebradas. Na entrada do estádio, um grande tumulto se formou, já que poucos portões foram disponibilizados para dar fluxo aos milhares de fãs. Policiais a cavalo intimidavam o público e cenas de violência se alastraram do lado de fora do Mané Garrincha.
Lá dentro, a confusão continuou. Diante da aglomeração de pessoas para tentar chegar à pista, com um acesso apenas, muitos pularam o fosso em torno do gramado para “encurtar o caminho”. Outros fizeram o mesmo descendo das arquibancadas. Os homens iam primeiro para evitar que as mulheres caíssem lá embaixo. Muita gente se machucou nessa “aventura”.
Amor e ódio
Renato Russo, notoriamente, tinha relação de amor e ódio com Brasília. Se por um lado cantava “meu Deus, mas que cidade linda, nesse país lugar melhor não há”, guardava muitos ressentimentos do público local dos tempos, principalmente, de Aborto Elétrico e Trovador Solitário: ele se achava “perseguido” e incompreendido em sua arte.
Com o sucesso nacional da Legião Urbana, os shows por aqui passaram a ter ar de “revanchismo”. Eram frequentes os discursos do cantor contra os “playboys” e “fascistinhas” da cidade.
Às 22h45, com quase duas horas de atraso, a banda subiu ao palco e não demorou para Renato Russo repetir a dose de provocações. Só que dessa vez diante de uma multidão já irritada pelas várias confusões ocorridas antes.
Uma situação que se agravou pela inadequação do equipamento de som e pela baixa estatura do palco – uma absurda exigência do cantor para se manter “próximo ao público” numa época em que ainda não havia telões para compensar a distância. Em meio à animosidade, bombinhas de são-joão foram atiradas em direção à banda.
Antes de Conexão amazônica, a quarta música do repertório, um fã subiu no palco e montou nas costas de Renato Russo, que reagiu dando golpes com o microfone. Furioso, o cantor passou a hostilizar mais a plateia e discutir com os seguranças, avisando que “reduziria o show”.
Ao final de Tempo perdido, após quase uma hora de apresentação, a Legião Urbana deixou o palco e durante muito tempo as luzes do estádio permaneceram apagadas. Tudo indicava que não haveria mais volta.
Vandalismo
Quando a iluminação geral foi acesa, o clima de guerra chegou ao ápice. Com dificuldades, parte do público tentava ir embora para fugir da confusão.
Os mais revoltados partiram para o confronto quebrando cadeiras, estruturas do estádio e equipamentos de som. No caminho de volta, 14 ônibus foram depredados num saldo de quase 400 pessoas feridas e 58 presas.
Em frente ao bloco onde morava a família de Renato Russo, na 103 Sul, vários fãs se reuniram para pichar o muro de um posto de gasolina com frases de efeito: “Fora Legião” e “Não voltem nunca mais”.
Pilhas de discos da banda chegaram a ser queimadas. Após o 18 de junho de 1988, a Legião Urbana, com seu líder, nunca mais se apresentou em Brasília. O cantor morreu em 11 de outubro de 1996, vítima de Aids.
Homenagem no rádio
Para lembrar desses tristes acontecimentos ocorridos, há exatos 30 anos, será apresentada hoje uma edição especial do programa Legião Eterna com a exibição, na íntegra, do polêmico show da Legião Urbana no Estádio Mané Garrincha. Basta sintonizar a Rádio Cultura FM (100,9MHz) de Brasília, das 23h à 0h, ou acompanhar on-line pelo link www.cultura.df.gov.br
Confira aqui um pouco do clima pesado, durante o show da Legião, em parte do documentário ‘Rock Brasília – Era de Ouro’, de Vladimir Carvalho.
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